terça-feira, 8 de maio de 2012

Logística Aplicada



Uma agradável brisa de primavera soprava naquela manhã de outono. As árvores desfolhavam-se pelas calçadas. E ela, abrindo o portão da frente, deixou para trás o condomínio inteiro que ainda dormia. Era a única moradora a sair àquela hora da manhã, sempre na troca da guarda da portaria. Acompanhada pelo monitor da guarita, podia-se supor ouvi-la pelo corredor, apressada em direção ao elevador, o estalido dos saltos altos, e logo esperar o tilintar da chave ao abrir o portão no térreo -  e finalmente se ouvir os saltos ritmados contra o calçamento externo até o fim da rua. Lá vai ela, solitária, como sempre.
O ônibus da fábrica jamais se atrasa. E a viagem leva 1h30min. Se o perdesse, a linha intermunicipal a levaria em uma eternidade de 3h até a fábrica. Uma vez isso e sua cabeça estaria a prêmio. Mas em dez anos, dos quais gozara férias somente pelos dois primeiros, tal coisa jamais acontecera. Até aquele dia.
Vinha ela rua acima, as pernas se alternando pela abertura nas costas da saia, da mesma cor do terninho e a bolsa bem grudada ao corpo. Na outra mão, um livro cujo marca-página denunciava que a leitura estava apenas no começo. Mas já se revelara algo de valor incalculável, único e encantador, dizia a si mesma, a julgar pela capa -  e estendendo o braço, admirou mais uma vez as filigranas douradas gravadas na moldura e as letras em cursiva inglesa sobre um fundo que imitava ardósia, verde-escuro com relevo imitando a textura do couro. Nisso, uma flor envelhecida, que despencava do alto e procurava asilo de galho em galho, rendeu-se à brisa da manhã e pousou mansamente sobre a capa do livro. Imediatamente, pararam os pés da mulher. 
Procurou de onde a flor poderia ter caído e deu-se conta de que havia uma árvore frondosa à beira do calçamento. Mais um pouquinho à direita, pôde ver o céu sempre cinza de outono, suavemente colorido pelos matizes magenta da manhã que recém iniciava e ainda o brilho longínquo da última estrela a persistir. E a brisa, novamente generosa, soprou de mansinho, descobrindo os únicos fios à solta do seu cabelo negro preso em coque. E essa flor? De onde viera? Nem era daquela árvore! Não daquela, mas da que havia logo atrás, ainda mais robusta, cujas raízes se pronunciavam acima do solo umas sobre as outras, num frenesi estático que levara décadas para ser esculpido. Já estava mesmo com as pernas flexionadas e o nylon da meia-calça quase a roçar num galho seco, quando reconheceu, ao longe, o ruído do motor do ônibus da fábrica dando a partida.
De súbito, percebeu-se procurando desvencilhar-se das flores sob a sola do calçado, que a faziam deslizar sobre o calçamento enquanto o ônibus arrancava. Acabava de tornar-se mais um dentre os milhares de usuários que perdem o ônibus a cada manhã na capital. Resignadamente, passo a passo, dirigiu-se até a parada de ônibus, como se houvesse apenas uma direção a tomar: a fábrica. E esperou o coletivo da linha intermunicipal, que passava só de hora em hora. Cabeça a prêmio e uma flor caída nas mãos. Ou seria cabeça caída nas mãos e uma flor como prêmio?
Pensou em todos esses anos subindo a mesma calçada. A pressa, o medo de perder o emprego. Era só o que movia seus pés. As árvores crescendo, invisíveis, à beira do caminho, as flores em seus ciclos completos, a chuva regando as raízes descobertas, o sol de verão desaparecendo por entre as copas refolhadas de recente primavera, e todas as manhãs pinceladas de lilás que ela não vira nascer. Num misto de autocomiseração e revolta, abriu o livro, procurando um meio de livrar-se de si mesma, como de uma inimiga. As páginas falavam de uma mulher que vinha em seu camelo e, segundo o costume dos antigos quando se preparam para as núpcias, estava esta adornada da cabeça aos pés com as mais finas vestes e, como símbolo da promessa ao noivo, trazia consigo um pingente do ouro mais puro do Oriente. De longe, a noiva, ao levantar seus olhos, avista a figura de um homem que vinha de sua meditação no campo, ao cair da tarde. Perguntou a moça ao servo que conduzia o camelo pela guia: "Quem é aquele homem que vem pelo campo ao nosso encontro?". E neste ponto, a leitura foi interrompida porque o ônibus já encostava e abria-lhe as portas.
Entrando, tomou assento ao lado de uma senhora, que dormia profundamente. Do outro lado do corredor, ao lado de uma poltrona vazia, o rosto conhecido, mas não saberia dizer exatamente de onde, de um homem bem-apessoado. Não; corrigiu-se, traindo a memória: era um agricultor. Certamente um colono, desses que sempre acompanham o capataz da fazenda. Certamente teriam dito ao seu patrão que a peça do trator deveria ser retirada no Setor de Logística e ela, certamente, o teria atendido. Por isso, eram-lhe tão familiares os traços do nariz afilado, da boca bem desenhada e do maxilar forte, a expressão dos olhos. O cabelo havia crescido um pouco, talvez, tivesse aumentado o número de fios prateados, mas os olhos eram os mesmos! Tudo isso ela via pelo reflexo do vidro, porque ele ia com os olhos fitos no horizonte, enquanto o sol da manhã desenhava-o no cristal aquecido da janela. E a moça do Setor de Logística tem nome?- perguntou ele, há tanto tempo que ela não saberia dizer em que ano isso aconteceu. Talvez logo no início, quando ninguém parava no posto e as pessoas não conseguiam decorar o nome do responsável pelo setor. Então, ela lembrou-se de que apenas virara o crachá com a identificação para que ele lesse o nome dela, ao que ele sorriu prontamente, agradecido, talvez imaginando o que haveria feito com que as faces da moça se enrubescessem de repente. Pacotes e notas foram trocados e tudo voltara ao normal. Até aquele momento, dentro do ônibus.
De súbito – porque a vida acontece assim mesmo-, ele ergueu-se, recolheu a bolsa e o casaco em uma das mãos e preparou-se para descer, apoiando-se nas extremidades dos bancos do corredor. Então, virando um pouco a cabeça, seus olhos deram com os dela, que imediatamente enrubesceu, surpreendida no seu secreto mister. Rebeca?, ele perguntou com doçura tal que demonstrava apenas querer certificar-se de que a memória não o enganara. Sim! Concordou ela, sonoramente - e imediatamente lembrou-se de que ele não era um colono e sim dono de duas fazendas, com centenas de empregados e duzentas máquinas de todos os tamanhos. Ela havia respondido quase que mecanicamente, tão sob o impacto da surpresa, que o rubor já lhe saía pelos olhos, ao mesmo tempo em que ouvir seu nome pronunciado com doçura e tamanha virilidade, fê-la perceber que seu corpo todo era apenas um único órgão, que agora vibrava descompassado. E os olhos dele, os mesmos de antes, diziam tanta coisa que ela não entendeu quando ele perguntou se ela ainda estava na fábrica. Ainda na fábrica?, ele repetiu. Mas logo o ônibus encostou e ele teve que dirigir-se apressadamente até a porta. Não antes de dizer-lhe, quase reservadamente, que fora um prazer revê-la.
Mais uma hora e ela também chegou ao seu destino. Uma fila já a aguardava na entrada do Setor. Colegas atônitos e visivelmente perdidos entre pacotes e peças; e notas e prateleiras, procuravam inutilmente resolver o incidente da ausência de Rebeca. Chegou a moça do Setor, diziam uns para os outros. E respiravam aliviados. Assim, no espaço de três horas inteiras, ela ocupou-se ininterruptamente em atender a todos e, somente após resolver o caos local, permitiu-se ir ao banheiro, esvaziar a bexiga que, a essa altura, já parecia portar garrafas quebradas no lugar de litros e litros de um líquido choco.
No final da tarde, uma voz metálica anunciou seu nome, ordenando-lhe que se dirigisse imediatamente ao Departamento Pessoal. Ela estava sendo desligada da organização a partir daquele momento. Não era nada pessoal, seu trabalho também era bom e tudo o mais. Mas, de acordo com as normas da empresa etecetera e tal, seus serviços não eram mais necessários. Deveria apenas assinar os papéis, pegar suas coisas e submeter-se ao exame demissional. Sem esperar que lhe repetissem que, segundo as normas da empresa, toda e qualquer emoção que desestabilizasse o grupo deveria ser totalmente suprimida, fez exatamente como lhe ordenaram.
Uma significativa transferência bancária foi seu último estágio na primeira semana de desemprego e olhos inchados de um choro compulsivo. Na portaria, os guardas se revezavam a perguntar sobre a moradora do 204 que não era mais vista quando os turnos eram trocados. Ela só conseguia reunir forças para mover-se ao cair da noite, quando se arrastava até a padaria mais próxima e logo voltava. Na semana seguinte, ninguém mais duvidava: ela perdera o emprego. Quatro semanas inteiras passaram e ela mergulhada em suas cobertas de cama, entre pantufas e canecas de café. Até que se lembrou do livro. Da flor. Do ônibus. Do homem. E lembrou-se dela, que ainda estava viva, apesar dos pesares.
Aprumou-se decididamente. Rímel nos olhos, terninho...Não: jeans. Jeans e botas. E aquele velho colete. Quase não era ela no espelho, mas saiu porta afora movida de uma alegria súbita. Subindo a rua, fez menção com a cabeça, cumprimentando a árvore no caminho com certa cumplicidade, e continuou como se houvesse uma única direção a tomar. No ônibus intermunicipal, acompanhava com cuidado a paisagem. Antes para não perder o ponto de descida do que para admirá-la. Foi assim que desembarcou em meio a fazendas intermináveis. Seria bom se passasse um táxi. Mas até que as botas lhe pareciam agora as melhores parceiras nesta missão insólita. 
Junto à entrada de uma das fazendas, um velho senhor preparava o palheiro, tendo a cuia e o mate já de lado. A entrada era bem dizer um pórtico e o velho, um bonachão de faces rosadas sob o chapéu de aba longa e reta. Eram umas terras que haviam pertencido ao pai do gringo, disse ele. Depois que o filho botou tudo a perder, ainda restava uma que outra boa de plantar e criar quem sabe umas dez cabeça de rês - arrematava ele, no linguajar campeiro. Ela já antecipava a alegria de ver a terra, a casinha amarela, que deveria ser igual a da foto na Internet. Se o senhor não se importar, quem sabe me faria a gentileza... Eu lhe levo lá, dona, aquiesceu ele prontamente, já preparando o assento da camionete para que a mulher se acomodasse.
Em quinze minutos já se via a colina, a casinha amarela, as ovelhas. Mas aqui quem mora é o guri, disse ele: o filho do gringo. A terra que lhe venderam é logo ali adiante. No vale que se abriu, bem na encosta, em meio a uma guarnição de araucárias, a casinha amarela, com as janelas emolduradas de azul desmaiado, surgia como numa aquarela. Daqui pra lá, só a pé ou a cavalo, disse ele. E quanto eu lhe devo?- perguntou ela, buscando a carteira na bolsa. Ele, quase ofendido, respondeu-lhe numa cortesia forçada: mas bem capaz! Foi um prazer, dona! Ela sorriu por dentro e por fora. Agora, ela era dona. Dona! Agradeceu e já ia despedir-se quando viu, pelo caminho que levava até a porteira das suas terras, um que vinha com o sol por detrás, pois já era fim de tarde. Perguntou ao velho: "Quem é aquele homem que vem vindo ao nosso encontro?". É Isaque, respondeu ele: o filho do gringo. Ela, descendo o ray-ban do topo da cabeça, por trás do cristal esverdeado, reconheceu os traços do homem que vinha. Seu nariz afilado, seus lábios perfeitos, o maxilar proeminente e o olhar fixo nela, que agora, parecia sorrir-lhe, sussurrando o seu nome, como uma oração silenciosa. 
Autoria do Conto: Mirna Cristiane Cases
Data: 08 de maio de 2012
Texto integrante do Livro de Contos da Autora a ser publicado em breve.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Análise do Conto A Autoestrada do Sul, de Julio Cortázar


A provocação de Cortázar é válida. E muito bem-vinda por ser oportuna em nossos dias uma crítica ainda que velada ao sistema que amalgamou o homem à máquina e à tecnologia. Note-se que ele publicou o livro em 1969, na Argentina que ainda se estruturava culturalmente após o golpe militar! Em minhas mãos, a 4ª edição, de 1984, pela Civilização Brasileira.
No conto de abertura de Todos os Fogos o Fogo, o local que se apresenta ao leitor é o trecho que liga Fontainebleu à Paris. A Auto-Estrada do Sul (título do conto que, naquela época, separava-se com hífen), descreve o comportamento das pessoas frente a um congestionamento que dura mais do que o esperado e a impressão que fica é de que as pessoas sucumbiram sob as máquinas, em última instância, sob seus bens de consumo, resultado do seu poder de compra. Isso não porque o narrador-observador as nomeia como carros, referindo-se aos carros que possuem, mas porque estas estão tão intimamente conectadas aos motores de seus veículos que, ao menor sinal, eles se sentem vivos por darem partida na chave e engrenar a primeira marcha. Parece que o sangue lhes volta às artérias. Noutra observação menos extraordinária do conto, evidencia-se que as necessidades fisiológicas de fome, sede e excreção são as primeiras a forçar os humanos a perceberem-se como tais e, assim, forçados a saírem das máquinas, põem-se em busca de suprir essas necessidades. À medida que o passar das horas e o clima trabalham (forças naturais), há a predominância do humano em detrimento à máquina, pois forja-se uma logística de guerra para a sobrevivência de blocos de pessoas em diversos pontos do congestionamento e a satisfação do desejo correspondido, quando os corpos malcheirosos, mas imbuídos da busca por satisfazer seus instintos mais primitivos, se correspondem no meio da madrugada, contando com a aquiescência fiel e silenciosa da platéia, onde todos são cúmplices uns dos outros. Aparentemente (e este é um recurso muito próprio de Cortázar), o material é subjugado pelo humano: carros viram cama, ambulância, ataúde; até o revestimento de seus estofamentos vira cobertor para proteger do frio e da neve. Mas, é notável e até certo ponto angustiante, ver os homens tão apegados àquelas máquinas tão suas que seus nomes já foram incorporados à sua pessoa, que nenhum deles pensa em abandonar seu veículo na autoestrada e prosseguir a pé, num gesto de protesto ao descaso das autoridades de trânsito que abandonam motoristas à própria sorte e ao mesmo tempo, num rompante de desprezo ao materialismo e todo seu desarranjo inorgânico e insustentável, numa demonstração de que a vida pode valer mais que um congestionamento, que não será detida por nada. Com exceção do Caravelle, que se opondo à inação, livra-se do congestionamento e de todo o torpor de uma reflexão imposta por esta situação inesperada, que se estende demasiadamente em detrimento a uma decisão já tomada ao entrar no veículo e que, por meio do suicídio ali mesmo vai às vias de fato. A alienação é tal que somente esta primeira morte causa impacto – talvez pela forma que a anunciou. Mas o valor da máquina, o preço ao que seu dono submeteu-se até que estivesse pronto a usufruir dela, e que agora o nomeia e o liga eternamente a ela, não o permite abandonar seu veículo por nada neste mundo. Prova de que o capitalismo triunfa sobre o pensamento humano é que, quando o congestionamento é desfeito, todos os carros fluem num movimento de inércia constante e desesperadora, acelerados sem que seus motoristas saibam exatamente porque tanta pressa e sem que estes sequer, olhem para trás. Como os faróis de seus carros, eles só conseguem olhar para frente.

Autoria: (Mirna) Cris Cases, Acadêmica de Letras da UNIASSELVI/POA-RS