A provocação de Cortázar
é válida. E muito bem-vinda por ser oportuna em nossos dias uma crítica ainda
que velada ao sistema que amalgamou o homem à máquina e à tecnologia. Note-se
que ele publicou o livro em 1969, na Argentina que ainda se estruturava culturalmente após o golpe militar! Em minhas mãos, a 4ª edição, de 1984, pela Civilização Brasileira.
No conto de abertura de Todos os Fogos o Fogo, o local que se apresenta ao leitor é o trecho que liga Fontainebleu à Paris. A Auto-Estrada do Sul (título do conto que, naquela época, separava-se com hífen), descreve o
comportamento das pessoas frente a um congestionamento que dura mais do que o
esperado e a impressão que fica é de que as pessoas sucumbiram sob as máquinas,
em última instância, sob seus bens de consumo, resultado do seu poder de compra. Isso não porque o narrador-observador as nomeia como carros, referindo-se aos carros que
possuem, mas porque estas estão tão intimamente conectadas aos motores de seus
veículos que, ao menor sinal, eles se sentem vivos por darem partida na chave e
engrenar a primeira marcha. Parece que o sangue lhes volta às artérias. Noutra
observação menos extraordinária do conto, evidencia-se que as necessidades
fisiológicas de fome, sede e excreção são as primeiras a forçar os humanos a
perceberem-se como tais e, assim, forçados a saírem das máquinas, põem-se em
busca de suprir essas necessidades. À medida que o passar das horas e o clima
trabalham (forças naturais), há a predominância do humano em detrimento à
máquina, pois forja-se uma logística de guerra para a sobrevivência de blocos
de pessoas em diversos pontos do congestionamento e a satisfação do desejo
correspondido, quando os corpos malcheirosos, mas imbuídos da busca por satisfazer
seus instintos mais primitivos, se correspondem no meio da madrugada, contando
com a aquiescência fiel e silenciosa da platéia, onde todos são cúmplices uns
dos outros. Aparentemente (e este é um recurso muito próprio de Cortázar), o material é subjugado pelo humano: carros viram
cama, ambulância, ataúde; até o revestimento de seus estofamentos vira cobertor para
proteger do frio e da neve. Mas, é notável e até certo ponto angustiante, ver
os homens tão apegados àquelas máquinas tão suas que seus nomes já foram
incorporados à sua pessoa, que nenhum deles pensa em abandonar seu veículo na
autoestrada e prosseguir a pé, num gesto de protesto ao descaso das autoridades
de trânsito que abandonam motoristas à própria sorte e ao mesmo tempo, num
rompante de desprezo ao materialismo e todo seu desarranjo inorgânico e
insustentável, numa demonstração de que a vida pode valer mais que um
congestionamento, que não será detida por nada. Com exceção do Caravelle, que se
opondo à inação, livra-se do congestionamento e de todo o torpor
de uma reflexão imposta por esta situação inesperada, que se estende
demasiadamente em detrimento a uma decisão já tomada ao entrar no veículo e
que, por meio do suicídio ali mesmo vai às vias de fato. A alienação é tal que
somente esta primeira morte causa impacto – talvez pela forma que a anunciou. Mas
o valor da máquina, o preço ao que seu dono submeteu-se até que estivesse
pronto a usufruir dela, e que agora o nomeia e o liga eternamente a ela, não o
permite abandonar seu veículo por nada neste mundo. Prova de que o capitalismo
triunfa sobre o pensamento humano é que, quando o congestionamento é desfeito,
todos os carros fluem num movimento de inércia constante e desesperadora, acelerados sem que seus
motoristas saibam exatamente porque tanta pressa e sem que estes sequer,
olhem para trás. Como os faróis de seus carros, eles só conseguem olhar para
frente.
Autoria: (Mirna) Cris Cases, Acadêmica de Letras da UNIASSELVI/POA-RS
Legal me ajudou a entender e interpretar um pouco o conto :D
ResponderExcluirParabéns! Obrigado! Sempre que tenho atividades escolares, costumo ler os textos imposto e logo após pesquisar resumos, resenhas, críticas, ..., para um melhor entendimento. Seu posicionamento sob o conto, serviu de muita beneficialidade a mim.
ResponderExcluirMuito agradecida!
ResponderExcluirAcabei de ler o conto e ainda me sinto bastante impactada, procurando por análises, reflexões sobre ele. Grata!
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