domingo, 17 de julho de 2016

Desverso

De repente, era bom amar o que é Belo
desejar insaciavelmente o Belo
Era aquela Beleza, meu anelo

E foi bater os olhos e inflamar-me

Foi bater os olhos e prender-me

Caminhei alegremente ao patíbulo
Dizendo eu ao Belo: leva-me
Cativa estou do teu poder
Sem que o Belo sequer
precisasse mover-se do lugar
Eu ia, cegamente, ao seu encontro
Julgando da sedução não ser presa
e tão prestes a diluir-me num mais que macabro ritual
Logo eu: àquela altura da vida, a me aventurar
a enfeitiçar-me por um cavalo sinistro
Quando tudo o que se tem nas mãos
é uma superfície cálida:
lisa pelagem,
músculos desenhados à perfeição,
a cor de véu nos olhos,
um puro-sangue moderno,
um Belo e robusto exemplar,
tinha o acúmulo de palavras articuladas,
uma vaga impressão de sabedoria
e uma Aura que elevava tudo que era dele
à décima quinta potência
Entregar-me a isso parecia correto
pois era o Belo que eu perseguia
Do Belo eu me alimentara
Assim eu me suprira
Só o Belo me bastara
Até que, num lapso, rachou a casca
Então, como pedra clivada
partiu-se e revelou o conteúdo 
E eis um bicho por dentro
Que por mil tentáculos me dominava
Era monstro comedor de gente
Com boca que não só devorava,
mas, também, maldizia
Uma boca que não só acusava
mas, também, confundia
Definho eu ou seria impressão, eu me perguntava
E desaparecia por entre as dobras do tempo
Horas, dias, anos, enquanto me iludia
Eu dava tudo de mim, então, nele, me diluia
Tudo pelo Belo que já não era
E, que talvez, nunca fora
Mais que uma invenção minha
para incendiar as estacas da minha tenda
arrasar a terra atrás de mim
Abortar minha maternidade
que no lugar do ninho cresceu um vazio
Eu mesma a interditar meu Universo
passando a habitar lugares sombrios
Pelo Belo abdiquei da Eternidade
Fiquei qual Joaquim: pelo amor comido
Fui eu mesma a comer minha identidade
e todos os papéis onde escrevera meu nome
Fui eu mesma a comer meus livros de poesia
e também essas palavras lúgubres
que nunca se juntarão em verso.



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