terça-feira, 27 de junho de 2017

Ah! Este Admirável Mundo!


Admirável Mundo Novo: análise do romance de Aldous Huxley
Por Cris Cases[1]


Publicada em 1932, a narrativa ficcional de Aldous Huxley alcança a idade de 85 anos com a incrível jovialidade de um artefato contemporâneo - embora o clássico pertença à Escola Modernista inglesa.
O contexto histórico no qual foi composto o Admirável Mundo de Huxley fornece a matéria-prima para a obra: a crise financeira e a escassez que se abateram sobre a Europa no período que se estendera após a Primeira Grande Guerra (1914-1918), o sentimento de desolação de lutos revisitados quando da reconstrução das cidades arruinadas nos bombardeios, no revirar da terra para o plantio – outrora pisoteado pelas tropas de batalha; e, sobretudo, na resiliência. A resiliência de quem não tinha outra opção para sobreviver a não ser juntar-se às massas de trabalhadores nas linhas de montagem das indústrias.
A resiliência humana é o que se infere desse texto literário. O termo, cunhado pela Engenharia - correspondente à Física dos Materiais - faz referência à magnitude que quantifica a energia absorvida por um material na hora de romper-se sob o efeito de um impacto. A isso chama-se resiliência. O cálculo é realizado a partir da unidade de superfície de ruptura[2]. Portanto, este é um termo que, mesmo sendo muito utilizado pela Psicologia em nossos dias, foi originalmente criado para aferir o estado das coisas. Para os psicólogos atuais, a resiliência é capacidade de adaptar-se de forma mais ou menos rápida às novas situações, absorvendo e trabalhando a partir do impacto sofrido. Houve um tempo em que reagir assim era considerado patológico, mas, dada a complexidade dos contextos a que os seres humanos estão expostos, tornou-se um diferencial, uma qualidade. Interessante notar como humanos tornaram-se aos poucos semelhantes às coisas no transcorrer dos tempos. O leitor perspicaz saberá guardar bem esse termo: coisificação.
Linhas de montagem e processos mecanizados, aliás, oferecem a estrutura desse Mundo Novo. As linhas de montagem trazem a imagem do processo de produção fracionado, em que o operário (responsável apenas por uma das partes na esteira) desconhecia o quanto vinha antes dele e o quanto depois ainda haveria. Ele tanto poderia estar apertando um parafuso de um automóvel quanto de um tanque de guerra - ou de um torpedo. O que importava a ele era fazer a sua parte. Huxley captou bem o espírito pragmático do capitalismo mais selvagem: ao operário era negado o direito de autoria sobre o seu fazer; ele apenas cumpria ordens e mantinha-se limítrofe para a garantia do seu emprego. À época de sua publicação, esta era uma crítica clara ao advento do Fordismo. Mas, com o passar do tempo, movimentou-se para outros setores, oferecendo ao leitor a metáfora própria para cada década. O que torna essa distopia uma realidade cada vez menos hipotética.
E, mais que resilientes, Huxley concebeu um mundo onde operários, patrões e todos os habitantes eram felizes. A começar pelo nascimento: eram geneticamente separados em castas, de modo que um operário seria sempre um operário; patrão seria patrão. Ninguém ousaria querer ser mais ou pensaria ser menos. Cada um vivia, assim, bem feliz em seu quadrado. A propósito, a reprodução humana também se dava em escala industrial, mecanicamente: sem o aparato orgânico, sem sentimento, sem relação com o outro e sem família. Algo absolutamente desumanizado. E, quanto mais inferior fosse a função que desempenharia aquele ser para a manutenção da vida em sociedade, menos se investiria em sua matriz original: um ovo apenas poderia dividir-se até noventa vezes. Esse contingente seria suficiente para, por exemplo, suprir de clones a uma usina inteira, gerando uma significativa economia no setor de reprodução.
O leitor é convidado a ver embriões mantidos artificialmente em laboratório até atingirem a fase adulta. Estaria a narrativa antecipando-se à década vindoura, que trazia em seu bojo o Nazismo ou seria esta uma metáfora para os nossos dias? Leitores da realidade, envolvidos com o Biodireito/Bioética que o digam[3].
Não somente isso, os embriões eram monitorados e condicionados psicologicamente enquanto se desenvolviam: era-lhes ensinado como agir, como reagir, como sentir e como pensar. Interessante notar que o condicionamento psicológico iniciado na fase embrionária, continuava por toda a vida: durante o sono, os habitantes desse mundo novo eram conduzidos suavemente pela atraente propaganda hipnopédica – que nada mais é do que controle da mente, lavagem cerebral. Até mesmo no entretenimento: às imagens cinematográficas ou figuras sonoras, somavam-se sensações de prazer e dor, como uma miração[4] coletiva. Assim, definitivamente, assegurava-se a harmonia e a paz. E tudo era anunciado como um triunfo da Ciência.
Huxley magistralmente oferece um modelo de sociedade em que a Eugenia é plenamente aceita e a interdependência dos indivíduos é descartada: o Outro simplesmente desaparece e com ele, suas demandas. Há um esvaziamento de significado afetivo. O desejo erótico é suprido pelo utilitarismo promíscuo e frio; a paixão não existe. Amor, nem se fala. A essência do humano se dilui nessa modernidade onde apenas importa a manutenção do Estado. Assim como desaparece a dependência de um Criador [tão inconveniente, para alguns]. O resultado disso é a completa alienação. A narrativa cumpre seu papel de sedução: “É impossível não ver que este mundo é bom!”. Nas palavras do autor:

(…) o mundo é estável. O povo é feliz; todos têm o que desejam e nunca querem o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca ficam doentes; não têm medo da morte; vivem na perene ignorância da paixão e da velhice; não se afligem com pais e mães, não tem esposas, filhos, nem amantes a que se apeguem com emoções violentas. E se alguma coisa não estiver bem, há o soma.” (ADIMIRÁVEL MUNDO NOVO, 1932)[5]
Se a lavagem cerebral garantia a paz e harmonia, a ingestão diária do SOMA era a garantia de felicidade total. Esta substância sintética de rápida absorção pelo organismo humano deixava tudo colorido, suprido, elegante, equilibrado e bom. Aqui, outra crítica. Desta vez, ao mandamento “o que importa é ser feliz”. Na mesma esteira, segue a crítica ao pensamento pragmático d' “o fim justifica os meios” ou “foco no resultado”.
Mas, como não poderia deixar de ser, Huxley introduz um personagem que vai furar essa bolha de harmonia e paz. Ele é chamado de O Selvagem. Ao deparar-se com ele, o leitor passa a ter a revelação desse mundo: novo – e inescapável.
O tema é tão pertinente à atualidade que à obra de Huxley foi dedicado um painel no Fórum Social Temático (24-29 de janeiro de 2012, Porto Alegre). Os debates focalizavam a crise capitalista, a (in)justiça social e ambiental. E Huxley lá – vivo e inquiridor, com seu Admirável Mundo.
Cabe um paralelo. Hoje, o que serviu de pano de fundo para a construção daquele mundo de Huxley não é mais o saldo de uma Guerra Mundial e sim, uma nova crise financeira e moral. As exigências de um mercado que devora os direitos trabalhistas. Líderes e liderados que mantém aquecido esse mesmo mercado a qualquer custo para abastecer a contento sociedade – que ainda se mostra - de consumo. A resiliência é um diferencial, porém muitas vezes, é mantida à base de Fluoxetina. Mas o que importa mesmo é ser feliz, diz a propaganda. Escolas a serviço do sistema, formando sujeitos/sujeitados segundo determinismos e processos estreitos – e muitas vezes, obsoletos – onde é negado ao Professor a autoria pelo seu fazer e ao aluno, a crítica. Chegou-se à Era da Informação, mas o que isso significa mesmo?
O leitor surpreender-se-á ao chegar ao final do Admirável Mundo Novo. Deparar-se-á com a crua verdade de que não basta se ter uma visão privilegiada de mundo. Porque, afinal, o essencial é O Invisível aos olhos[6].






[1] - Mirna Cristiane Cases, Professora de Língua Portuguesa para Fundamental II e Literatura
[2]- Informação de domínio público via web: www.conceito.de

[3]- Maria Helena Diniz, jurista e professora brasileira (PUC-SP), em sua obra intitulada O Estado Atual do Biodireito (3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006), afirma: “A engenharia genética, ou tecnologia do DNA recombinante, é um conjunto de técnicas que possibilita a identificação, o isolamento e a multiplicação de genes dos mais variados organismos. É uma tecnologia utilizada em nível laboratorial, pela qual o cientista poderá modificar o genoma de uma célula viva para a produção de produtos químicos ou até mesmo de novos seres, ou seja, organismos geneticamente modificados.” Partindo desse pressuposto, outra autora brasileira também professora, Renata Rocha, Mestre em Filosofia do Direito, que atua na área da Bioética e Biodireito, escreve: “A engenharia genética se apresenta, então, como uma técnica que, associada ao procedimento de fertilização in vitro, torna possível a manipulação de células-tronco germinais humanas, compreendendo a totalidade das técnicas capazes de interferir, alterar ou modificar a carga hereditária da espécie humana, a saber, o diagnóstico genético pré-implantacional, a terapia gênica e a clonagem, entre outras.” (O Direito à Vida e a Pesquisa com Células -Tronco. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 51) É importante ressaltar, no entanto, que, por conta de implicações decorrentes dessa manipulação, a legislação brasileira (Lei Nº 11.105/2005, art. 6º, II e II) limita a atividade do pesquisador, visando evitar a proliferação de seres humanos germinalmente modificados.
Para saber mais, consultar o trabalho de resenhistas, acadêmicos, no site www.scielo.br. Há, por exemplo, a resenha da acadêmica Débora Diniz sobre o livro intitulado O Útero Artificial, de Henri Atlan, publicado na França em 2005, traduzido para o Português e publicado pela Editora FIOCRUZ em 2006. O texto discorre sobre a Ectogênese – termo cunhado no início do século XX pelo geneticista Jonh Haldane (Inglaterra) – que faz referência ao conjunto de técnicas necessárias para produzir bebês fora do útero materno. Há, também, um artigo da Revista VEJA (3/NOV/1999) sob o título “Rumo à fronteira final”, revelando o avanço da técnica de Ectogênese em Tokyo, inclusive, comparando essa pesquisa aos embriões em laboratório do Mundo Novo de Huxley, cuja obra, à época, contava seus 67 anos.

[4]- Termo cunhado pelos adeptos ao ritual do Santo Daime.
[5] - HUXLEY apud CAPERUTO et al. Artigo intitulado ADMIRÁVEL MUNDO NOVO: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA ENTRE A OBRA E A SOCIEDADE PÓS-MODERNA. Créditos e cumprimentos aos autores, estudantes da Faculdade Cásper Líbero, Núcleo de “Comunicação, Recepção e Identidade” sob a orientação do Professor Doutor Dimas Künsch.
[6] - Paráfrase de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupèry

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